A literatura russa, que legou à cultura mundial alguns de seus maiores clássicos, escreveu nesta última quinta-feira, mais uma página da história da arte. Svetlana Alexievitch se tornou a primeira mulher de língua russa a receber o prêmio Nobel de Literatura, ingressando em um panteão que já destacou Boris Pasternak, em 1958, Alexander Soljenitsyn, em 1970, e Joseph Brodsky, em 1987. Jornalista e escritora engajada, deu voz às vítimas diretas e colaterais das guerras e das perseguições das eras soviética e pós-soviética, abrindo espaço ao testemunho dos anônimos. O anúncio da premiação foi realizado na quinta-feira, pela Academia Sueca, que prestou a homenagem "por seus escritos polifônicos, um monumento ao sofrimento e coragem em nosso tempo". Nascida no leste da Ucrânia, na extinta União Soviética, em 1948, e filha de professores - seu pai era historiador -, Svetlana cresceu em um território que serviu de teatro à Frente do Leste, a guerra entre Alemanha de Adolf Hitler e a União Soviética de Joseph Stalin, um dos capítulos mais sanguinários não só da 2ª Guerra Mundial, mas da história da humanidade. Depois de integrar os komsomols, a "Juventude Comunista", Svetlana mudou-se para Minsk, em Belarus, antiga Bielo-Rússia, onde estudou jornalismo. A partir de então, começou a colher e publicar os testemunhos daquilo que os críticos definiram como "história emocional" da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), de sua queda e da reconstrução dos países que compunham o bloco. Ao longo de sua obra, estão temas recorrentes como a denúncia da guerra, da violência e da propaganda de Estado de Moscou e da potência comunista que desabaria em 26 de dezembro 1991. Em seus seis livros, escritos em tom documental, sem ficção, estão registradas as repercussões da 2ª Guerra Mundial e da guerra patrocinada pela União Soviética no Afeganistão, mas também o declínio e a queda do bloco comunista e o desastre da usina de energia nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, em 1986. Seu espírito de denúncia ficou claro desde seu livro de estreia, A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, de 1985, quando reuniu depoimentos de sobreviventes dos teatros da 2ª Guerra Mundial, mas sem glorificações. Homens, mulheres, soldados ou não, têm rostos humanos e sofrimentos reais, o que lhe valeu acusações de traição à pátria por líderes políticos soviéticos da época. Sua obra, aliás, só resistiu à ditadura por decisão do líder reformista Mikhail Gorbachev, artífice da abertura soviética por meio dos movimentos Perestroika (Reconstrução) e Glasnost (Transparência) e da distensão com o Ocidente. Foi Gorbachev à época quem decidiu não censurar o texto, que se transformou em imenso sucesso de público na União Soviética. Em Os Caixões de Zinco (1989), sobre a guerra do Afeganistão, as sanções foram mais duras, e Svetlana conheceu então o exílio na Europa. Seu livro seguinte, A Súplica - Chernobyl, Crônicas do Mundo Depois do Apocalipse, veio a público em 1996, já como sucesso internacional, traduzido em 17 línguas. Seguiram-se ainda Enfeitiçados pela Morte e Últimas Testemunhas, obra-prima sobre o relato da 2ª Guerra pelas crianças que a assistiram. Por seu último livro, o ensaio O Fim do Homem Vermelho ou o Tempo do Desencantamento, Svetlana alcançou o auge de sua repercussão internacional antes do Nobel, recebendo na França, por exemplo, os títulos do prêmio Médicis de 2013 e o de Melhor Livro do Ano da revista literária Lire. Nessa obra, a autora esquadrinhou a ambiguidade dos sentimentos do "homo sovieticus" sobre a queda do bloco comunista e as repercussões pessoais, familiares e sociais das transformações vividas na região com a abertura econômica. Sobre seus textos, Svetlana tem sublinhado o papel da coleta do testemunho na construção da narrativa real, mas costuma recusar os rótulos de jornalista ou de historiadora. "Eu não procuro produzir um documento, mas esculpir a imagem de uma época. Não fico ao nível da informação, mas exploro a vida das pessoas, o que elas compreenderam da existência", afirmou ontem. "Tudo começa para mim no mesmo lugar no qual se termina a tarefa dos historiadores: o que acontece na cabeça das pessoas após a batalha de Stalingrado, ou após a explosão de Chernobyl? Eu não escrevo a história dos fatos, mas a história das almas." Nos últimos anos, o ativismo da autora tem lançado luzes sobre a nova relação dos ex-soviéticos com o capitalismo, com a decadência cultural e também com a política, sublinhando a emergência de um sentimento nostálgico em relação à URSS, a popularidade de Stalin em certos círculos sociais e o esquecimento de Gorbachev. Coerente com sua trajetória, Svetlana é oposicionista ferrenha do regime de Alexander Lukachenko, eleito à presidência em 1994 e, desde então, no poder - o que lhe vale a alcunha de "o último ditador da Europa". Sua visão crítica de Belarus a leva com regularidade a buscar exílio na Europa Ocidental, em países como Itália, França, Alemanha e Suécia.