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Jornal Diário de Suzano - 14/11/2024
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Coluna

Marcovaldo, meu inspirador!

31 outubro 2024 - 05h00

Esta semana fui visitar um supermercado novo na cidade, o que indica por um lado certa indisposição em pegar o trem e ir até São Paulo ou fazer um passeio curto pelo Vale do Paraíba ou pela Baixada Santista; e por outro lado indica também a completa falta de alternativa para o uso do tempo livre: circuito verde (parques e praças); cinema de rua; programação cultural; centros poliesportivos.
Imediatamente lembrei-me do conto "Marcovaldo no supermercado" do livro "Marcovaldo ou as estações na cidade" de Ítalo Calvino.
O livro é uma coletânea de 20 contos publicada originalmente na Itália em 1963 e traduzida para o Brasil em 1994. São cinco narrativas para cada estação do ano. Todas as histórias ocorrem no ambiente urbano e tem Marcovaldo como personagem principal. Ele é um operário pobre, casado, pai de 6 filhos (são oito bocas para alimentar), otimista, exímio observador da cidade e ecologista. Na verdade, não sei se sua busca pela natureza é mais decorrente de sua condição de pobreza (e então quer explorar os recursos naturais disponíveis) ou se é um ecologista autêntico. As primeiras histórias foram escritas no início dos anos 1950 no contexto de uma Itália pobre no pós-guerra. As últimas histórias, escritas em meados dos anos 60, no contexto de crescimento econômico. 
Assim, as desventuras de Marcovaldo denunciam a pobreza e apresentam uma crítica ao processo de modernização da Itália no pós-guerra.
O livro é muito engraçado. Em muitas histórias Marcovaldo se deslumbra com algum detalhe inusitado da vida urbana - uma pomba, um cogumelo que nasce no ponto de ônibus - e depois se decepciona. Em todas as histórias há uma mazela ambiental ou social: poluição, consumismo, pobreza.
O conto "Marcovaldo no supermercado" é ao mesmo tempo uma crítica ao consumismo e à completa falta de alternativa para o uso do tempo livre dos trabalhadores:
"Às seis da tarde, a cidade caía nas mãos dos consumidores. O dia inteiro, a grande tarefa da população produtiva era produzir: produziam bens de consumo. Numa determinada hora, como se um interruptor fosse acionado, cessavam a produção e, rua! Lançavam-se todos a consumir".
Então certa noite Marcovaldo vai levar a família para passear: "Estando sem dinheiro, o passeio deles era olhar os outros fazerem compras; pois o dinheiro, quanto mais circula, mais é esperado por quem não o tem".
Começa descrição do passeio de Marcovaldo com sua mulher e seus filhos. As crianças pediam tudo o que viam pela frente. Marcovaldo recusava. Os filhos questionavam:
"E por que aquela senhora ali pode pegar? - insistiam, ao ver todas aquelas boas mulheres que, tendo entrado para comprar só duas cenouras e um aipo, não sabiam resistir perante uma pirâmide de latas".
Marcovaldo, então, se distancia da família, relaxa, cede à tentação. Pouco a pouco seu carrinho vai se avolumando. 
Quando reencontra seus familiares na boca do caixa, eis a surpresa: cada qual tem seu próprio carrinho, abarrotado. Eles também resolveram imitar os outros consumidores e empilharam todo tipo de "mercadoria" em seus carrinhos. O fim é inusitado. Ninguém leva nada para a casa.
Eu, sozinho, diante dos preços exorbitantes, levo duas caixinhas de chá com preços competitivos. Talvez não precisasse. Pudesse usar hortelã "in natura". Penso em seguida: fui induzido ao consumo por falta de qualquer alternativa para o uso do tempo livre.
Eis, pois, gestores públicos de plantão, inspirado em Marcovaldo, uma demanda para que tenhamos na cidade, além de supermercados (um dos símbolos do consumismo), circuitos verdes (parques e praças) com programação permanente; ruas bem calçadas e arborizadas para passear, incentivo a teatros e cinemas de rua; programação cultural; centros poliesportivos com atividades nos finais de semana.